M&A E A REGULAÇÃO DO PASSIVO OCULTO

Um dos desafios nas operações de M&A reside no tratamento do passivo oculto, vale dizer, na construção de cláusulas destinadas a modular justamente aquilo que é desconhecido no momento da celebração do negócio. 

Com contornos aparentados daqueles do vício redibitório ou do vício oculto, o problema do passivo oculto em transações de Fusões e Aquisições nem sempre acomoda soluções práticas, como a retenção de parte do preço ou via conta “escrow” ou, ainda, a reversão/anulação do negócio.

Destaque-se, estamos a tratar da aquisição de empresas, operações complexas cujo desfazimento pode se mostrar inviável. Nessas hipóteses, muitas vezes as soluções acham-se então no campo da indenização (“damages as a remedy”).

Como se sabe, o passivo oculto é a dívida ou obrigação não conhecida à época da concretização de operação de M&A – mas detectada após o fechamento* do negócio. 

(*) há usualmente dois momentos importantes no M&A, a saber, o “signing”, quando as partes firmam a documentação da operação, e o “closing”, data de início da efetiva execução contratual. Não é incomum que passivos ocultos venham à tona entre esses dois marcos temporais. 

Como dívida (exigível), o passivo oculto distingue-se da contingência ou passivo potencial, dado que o último é incerto, podendo ou não se materializar como obrigação. 

A responsabilização pelo passivo oculto dependerá, em muito, dos termos e condições insculpidos pelas partes em contrato, à luz dos artigos 421-A e 422 do Código Civil, segundo os quais: 

“Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:  

I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;  

II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e 

III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”;

“Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Mecanismos de Proteção. 

Costumeiramente, contas do tipo “escrow” e/ou retenções de parte do preço de aquisição constituem-se nos principais mecanismos de mitigação ou neutralização do passivo oculto. 

Em complemento, as partes podem contratar garantia securitária para fazer frente à obrigação desconhecida. O seguro contra passivo oculto é complexo e no mais das vezes desenhado em função das especificações dos contratantes: em tais contratações, o segurado pode ser o comprador ou o vendedor, o direito de regresso para a seguradora também é objeto de ajuste no caso-a-caso, assim como o fato de o passivo ser verdadeiramente oculto (absolutamente desconhecido por ambas as partes) ou omitido intencionalmente por uma delas. 

A Importância dos Contratos. 

As cláusulas de declarações e garantias (“representations and warranties”), seção importantíssima nos contratos de compra e venda de participação societária, devem contemplar os diversos cenários relativamente aos passivos ocultos – para fins de imputação de responsabilidades. No silêncio ou incompletude dessas cláusulas, e não as chegando as partes a bom termo consensualmente, caberá à arbitragem ou ao Judiciário, conforme o caso, decidir acerca da atribuição de responsabilidade pelo passivo detectado ou revelado após a concretização do negócio de M&A. 

Assim, a alocação de responsabilidades pelo passivo deve estar costurada e refletida em contrato, mediante a elaboração de cláusulas cuidadosamente negociadas, a partir da gênese dos efeitos jurídicos das declarações e garantias em instrumentos contratuais de M&A, de origem no direito anglo-saxão, e hoje significativamente reconhecidas pelo Judiciário brasileiro, que trata da distribuição de “(…) risk of unknown facts and/or future events if appropriately drafted to do so.” Cf. LATHAM & WATKINS; “Representations and Warranties”, The Book of Jargon Mergers & Acquisitions, p. 180 [texto eletrônico “online”].

Cumpre destacar, ainda, que os nossos Tribunais vem manifestando o entendimento de que o investidor/comprador tem o dever de “autoinformação” (quer dizer, o de buscar conhecer, em profundidade, os elementos ativos e passivos da sociedade “target”), ao mesmo passo em que a jurisprudência pátria condena a prática omissiva dolosa do vendedor.

Nas transações empresariais de Fusões e Aquisições, o direito brasileiro – em linhas gerais – considera e presume determinado nível de diligência do investidor/comprador (durante a fase de auditoria), compatível com a natureza do negócio e no pressuposto de equivalência ou paridade entre as partes, a despeito de eventual assimetria econômica entre elas.

O tema do passivo oculto deve ser endereçado com cuidado extremo – e cabe ao advogado de M&A chamar a atenção para os princípios prevalentes no direito brasileiro, dentre eles, o da boa-fé objetiva, mesmo após a edição do artigo 421-A do Código Civil (Lei da Liberdade Econômica), que conferiu maior elasticidade aos contratos tidos como paritários ou simétricos.