COISA JULGADA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA E O IMPERATIVO DO CONTINGENCIAMENTO

A legislação tributária brasileira é densa, complexa, casuística e caótica. Premida pela necessidade de alongar um cobertor que sempre deixa pés e o nariz para fora, a União (mas não escapam da crítica os entes municipal e estadual) pressiona pela produção de normativos defeituosos, ilegais, inconstitucionais. O resultado é a judicialização massiva em matéria tributária. 

Segundo o Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, produzido pelo Insper sob encomenda do CNJ (5ª Edição, 2022), o “alto índice de insegurança nas relações tributárias do país foi constatado em estudo realizado pelo Centre for Business Taxation, da University of Oxford, para a verificação da incerteza quanto à tributação de pessoas jurídicas em 21 países (DEVEREUX, 2016), em que o Brasil ficou à frente apenas da Índia.” O mesmo relatório informa um volume de contencioso tributário correspondente a 75% do PIB (R$5.4 trilhões em dezembro de 2020).  

Não bastassem as dificuldades enfrentadas pelo contribuinte para cumprir regularmente com suas obrigações tributárias, a insegurança jurídica e o “custo Brasil” nessa seara se agravam quando a jurisprudência, que deveria mitigar tais fatores, por vezes trilha o caminho inverso. 

Com efeito, a revisão de decisão judicial (em temas de direito tributário) pelo Supremo Tribunal Federal preocupa. Um colegiado de onze ministros não deveria, em tese, poder errar, e a desconstituição de decisão exarada pelo STF, com trânsito em julgado, soa como um passaporte para o erro – e a instituição velada de uma quarta instância (qual seja, o próprio STF, em sede de “juízo de retratação”).  

No recente julgamento do RE 955227 (Tema 885) pelo Supremo Tribunal Federal, havido agora em 08 de fevereiro, aquela corte entendeu que decisões “em controle difuso fazem cessar os efeitos futuros da coisa julgada em matéria tributária, quando a sentença tiver se baseado na constitucionalidade ou inconstitucionalidade do tributo.” O Pleno do Tribunal fixou a seguinte tese “1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”. Tudo nos termos do voto do Relator. Presidência da Ministra Rosa Weber. Plenário, 8.2.2023.”  

Trocando em miúdos, o STF declarou a constitucionalidade de tributo antes tido como inconstitucional (pelo mesmo STF).  

Contudo, a ideia central deste escrito não é a de analisar (ou atacar frontalmente) o mérito da decisão retratada nos parágrafos precedentes – ou mesmo a de demonizar a revisão da coisa julgada – mas antes chamar a atenção para as instabilidades estruturais do modelo, assim refletidas na singela equação:  

“produção legislativa açodada e de baixa qualidade + judicialização = riscos sistêmicos de revisão de coisa julgada.” 

 

O Supedâneo Legal para a Revisão da Coisa Julgada 

A lei (observado o limite constitucional), a doutrina e a jurisprudência reconhecem hipóteses de desconstituição da coisa julgada, todas bastante fechadas ou limitadas, como se extrai do artigo 966 do Código de Processo Civil, dado justamente tratar-se do desfazimento ou desconsideração de decisão que se supunha imutável – e a imutabilidade de decisões judiciais irrecorríveis é senão um dos principais pilares de sustentação da segurança jurídica e, por consequência, do próprio Estado democrático de Direito.    

Dentre elas, a inconstitucionalidade ou ilegalidade da decisão e a existência de um valor tão mais elevado (do ponto de vista dos fundamentos estruturais do Estado Democrático de Direito) – como a dever imperioso de tutelar um interesse coletivo que se sobreponha a determinada decisão transitada em julgado (com o propósito de assegurar a “juridicidade” do sistema). 

A proteção da coisa julgada acha-se albergada no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, no artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e no artigo 502 e seguintes do Código de Processo Civil, que conceitua a coisa julgada material como “a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”. Todos os fundamentos para a proteção da decisão judicial irrecorrível (que faz “coisa julgada”) concorrem para o desiderato da certeza e segurança jurídica da vida em sociedade.   

Por tudo, o que não se pode admitir é justamente a banalização do instituto da desconstituição da coisa julgada, tal qual ocorre com o da desconsideração da personalidade jurídica para a constrição de patrimônio dos sócios. No último, a exceção passou à regra – e o mesmo não pode acontecer com o direito fundamental à imutabilidade de decisão judicial irrecorrível.   

O Imperativo do Contingenciamento 

Seja como for, e registrado o inconformismo dos autores quanto ao conceito da revisão ou revitalização nos termos deste apanhado, o contribuinte deve pautar-se por extremo conservadorismo – cuidando de contingenciar os valores sob disputa judicial – e, em certos casos, extremos, mesmo aqueles cuja desobrigação de pagamento haja sido conferida por decisão com trânsito em julgado.  

A prática (ou a “ciência”) do contingenciamento, a seu turno, demanda abordagem multidisciplinar – com a consultoria de contadores, auditores, advogados especializados – sempre ao lado do financeiro.